Decano da advocacia criminalista de Pernambuco inocenta Sarí Corte Real em artigo

Decano da advocacia criminalista de Pernambuco inocenta Sarí Corte Real em artigo

Ninguém pode ser processado por palpite.


Bóris Trindade*

1. Acho muito difícil um Promotor oferecer denúncia contra a sra. SARI CORTE REAL, indiciada por um policial neófito, como autora do crime de abandono de incapaz, qualificado pelo resultado morte (art. 133, § 2o, CPB), por palpite.

Porque, e para lembrar o ex-Juiz SÉRGIO MORO (goste-se ou não se goste dele), é muito pertinente uma advertência que fez, assim: “O processo penal não é um faz de contas”.

2. Ora, como é de sabença trivial, o sistema punitivo brasileiro adota o princípio da tipicidade, previsto no art. 1o, do CPB (“Não há crime sem lei anterior que o defina”), nominado por FEUERBACH(1), como princípio da legalidade e bem definido como a “exata correspondência entre o fato e a lei”.

E o crime em questão está definido nestes termos, in verbis:
Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”.

3. É classificado pela doutrina, como crime instantâneo e de mão própria, ou seja, só quem pode ser autor desse crime é a pessoa que detém a guarda, ou a vigilância, ou a autoridade ou o cuidado do incapaz.

O cuidador/a do incapaz (velho, doente, criança, deficiente físico); o enfermeiro, sob contrato de assistência ao doente; o médico, igualmente; a mãe detentora da vigilância, enfim, há que ser uma pessoa obrigada, por lei ou contrato, do “dever de cuidar do incapaz”, como enfatiza JULIO FABBRINI MIRABETE(2)
que explica:
“O sujeito ativo do crime é a pessoa que tem o dever jurídico de zelar pela vítima”.

4. Melhor, como esclarece GUILHERME DE SOUZA NUCCI, in verbis:

“O autor deve ser guarda, protetor, ou autoridade designada por lei para garantir a segurança da vítima, pessoa de qualquer idade, desde que incapaz, colocada sob seu resguardo” (in “CÓDIGO PENAL COMENTADO”, 14a ed., Editora Forense).

Ou, como ensina DAMÁSIO E. DE JESUS, in verbis:

“Somente pode ser autor do crime, quem exerce cuidado, guarda, vigilância ou
autoridade em relação ao sujeito passivo, a vítima”
(in “CÓDIGO PENAL ANOTADO”, 21a ed., Editora Saraiva, p. 547)(3).

5. E o crime, para se perfectibilizar como tal, exige, por parte do cuidador, “conduta típica”, que

“… é abandonar a vítima, o que significa deixar sem assistência, desamparar,
largar, quer por levá-la a local em que não há meios de se proteger (crime
comissivo), quer afastando-se o sujeito ativo do ambiente de proteção, deixando o ofendido ao abandono”
(MIRABETE”, ob. cit.).

6. Por outro lado, o crime, que não admite a forma culposa (o agir por imprudência, negligência ou imperícia), tem o dolo consistente na “vontade de abandonar a vítima”, dolo específico, traduzido na “vontade de expor a vítima a perigo”, por isso que o abandono de incapaz é classificado como “crime de perigo concreto próprio quanto ao sujeito, instantâneo, comissivo ou omissivo”, em razão do que, “não havendo o dever especial de assistência”, por parte do agente, não há o crime em questão.

E a jurisprudência mostra-se chapada, assim:
“Para a configuração do crime, é necessário que o agente tenha a intenção de expor a vítima a perigo concreto de dano à sua vida ou integridade corporal” (RJTACRIN, no 38, p. 72).

7. Um pai desalmado que deixa o filho menor com uma terceira pessoa, tomando-lhe conta, enquanto vai dar uma “e volto já”; ou uma mãe, porque necessitando trabalhar, deixa o filho menor aos cuidados da avó ou de outrem e, inesperadamente, esse filho sofre um acidente na casa onde ficou (cai na piscina, afogando-se; sofre um choque elétrico etc etc etc), não pode ser acusado/a de cometimento de crime de abandono de incapaz, pois.

Não creio que um Promotor oferte denúncia contra essa senhora, cuja imprudência de não impedir o menor Miguel de ficar, só, no elevador, não se traduz em crime algum.

Mas, se ofertar a denúncia, e for recebida, os seus advogados, os competentes Célio Avelino e o filho Pedro, conseguirão obter seu trancamento, na instância Superior, sem nenhuma dúvida.

Afinal, não se processa criminalmente ninguém, por palpite.
Nem aqui, nem na China.

Notas de rodapé:

1 FEUERBACH, ANSELM VON.

2In “CÓDIGO PENAL INTERPRETADO”, 7a
ed., Editora Atlas, SP, p. 774.

3 ROBERTO DELMANTO, in “CÓDIGO PENAL COMENTADO”, Editora Saraiva, p. 484.

*Boris Trindade é graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife desde 1960, tendo 60 anos de carreira na advocacia criminalista.

3 thoughts on “Decano da advocacia criminalista de Pernambuco inocenta Sarí Corte Real em artigo

  1. Dr Boris Trindade. Grande Advogado e conhecedor, como poucos, da essência do Direito Penal. Ouvir ou ler seus comentários é sempre um processo de aprendizado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *